terça-feira, 4 de abril de 2023

Taxa de Embarque

( conto publicado no site das escritorassuicidas em 2014, sob tema dirigido " veio comer na minha mão ". Ficção) Não ia perdoar, não. Também não era pecado pra ser perdoado. Foi sacanagem. Isso ninguém esquece. Ela me sacaneou, puxou meu tapete. Queria num dia, noutro não queria mais. Exatamente assim: surtava, desmanchava tudo, nem aí com o próximo. O próximo estava distante. O celular tocou às onze e meia da noite. Eu acertando o relógio. Eu com a mochila pronta. Eu com o tesão na alma. Eu no voo 4054 para os braços dela. — Oi? — Oi... então, olha, temos um probleminha. Fui num show ontem à noite, conheci um menino e a gente transou. Ele está em casa. Então, não fica legal você vir. Foi assim. O chão abriu e o coração ficou roxo. Um garotão na parada. Dor da porra, indignação e mala desfeita. Assim, tudo foi para o inferno: as palavras e qualquer sentimento que tive um dia por ela. Mais nada. A dor da rejeição não durou mais que 24 horas. Uma mulher apaixonou-se por mim no jogo de bilhar: 42 anos, simpática e cheia de querer cozinhar em casa. Aquilo veio na hora certa, salvou-me por um mês, dois meses, quatro meses. A vida corria solta nas minhas veias, eu feliz na minha rotina. Tanta coisa boa rolando. Amigos. Festas. Colesterol controlado. Rim e fígado filtrando tudo. Que bom. Já nem pensava nessa história. Mas lembrava de vez em quando, um foco embaçado. Ontem abri meu e-mail: susto e calafrio. Aquele nome na minha caixa de entrada: "preciso conversar com você". Vadia, vagaba, não venha zonear minha paz de novo, quer falar comigo, o quê? O que, meu Deus?! Será que pegou alguma doença e vai se matar? Vai ver que foi isso. Daí lembrou das boas trepadas que tivemos e veio pedir perdão. Mas ia me contar isso pra quê? Pra aliviar. Ela é cheia de culpa mesmo, culpa porque trepa, culpa porque não trepa. Tão ruinzinha da cabeça. "Preciso conversar com você, estou corroída de remorso". Corroída de remorso o caralho. O garotão não comia direito e ela queria recaída comigo. Veio comer na minha mão. E me chupou com toda a culpa desse mundo. Funcionava no remorso. — Pronto, agora vou te levar pra rodoviária. Tá perdoada